PROCESSO DE APLICAÇÃO DO DIREITO:
INTERPRETAÇÃO, DECISÃO E ARGUMENTAÇÃO.
Angel Rafael Mariño Castellanos
Sumário:
Introdução. 1. Interpretação. 1.1. Classificação da
interpretação. 1.2. Métodos e critérios de interpretação. 2. Aplicação. 2.1. Aplicação e subsunção. 3.
Argumentação. Conclusões. Referências Bibliográficas.
Introdução.
Trata-se de um ensaio em que se busca
desmistificar a ideia de que o processo de aplicação do direito cinge-se a um
mero silogismo. De sorte, será demonstrado que o processo de aplicação do
direito passa por três etapas: a interpretação, a decisão e a argumentação e
que elas são influenciadas por razões não estritamente jurídicas.
Toda aplicação supõe, obrigatoriamente, uma interpretação. Mas nem
toda interpretação supõe uma aplicação. Nos tempos de Napoleão acreditava-se
que a norma poderia ser aplicada sem ser interpretada. Ora, contrariamente a
essa ideia, pergunta-se: como chegar a uma decisão, ou seja, como realizar uma
norma, sem previamente descobrir do que está se tratando, a mensagem que ela
contém, ou seja, seu significado? Para chegar a uma decisão, no processo de
aplicação, deve-se primeiro descobrir uma decisão anterior que está contida
nessa norma. E para determinar o que está contido nessa norma que será adotada
ou utilizada, é necessário, preliminarmente, desvendar o que ela diz, qual o
“dever-ser”, a conduta planejada, a regra, o mandato, o que está requerido.
Veja, portanto, que a decisão decorre de um processo complexo, baseado na
trilogia linguagem – interpretação – aplicação.
A aplicação é sempre uma escolha. Autorizar ou não autorizar. Em
nossas vidas, todos os nossos atos são sempre escolha e decisão. Geralmente,
essas decisões têm fundamento em uma norma. A aplicação do Direito é uma
decisão que tem, como fundamento, uma norma. Por isso, talvez o Direito seja um
sistema de decisões.
Doravante, aplicação, interpretação e linguagem serão associadas
num processo único, esclarecendo que o momento de aplicação supõe sempre uma
realização, seja de um tipo de norma, seja de outro, e que essa aplicação
sempre supõe uma decisão, a partir de uma escolha, que se dá a partir da
interpretação, um processo prévio que tem a função de atribuir significado aos
enunciados jurídicos.
Com isso, será demonstrado que a realização do Direito é um
processo simples para aqueles que veem nesse processo um simples silogismo.
Quem admite a aplicação como um processo de altíssima complexidade, terá que
concordar com Dworkin, quando reforça que a atividade de aplicação que o juiz
faz sofre influência de muitos fatores que não são somente jurídicos.
A interpretação é uma atividade cuja realização nem sempre foi
admitida, como sempre foi a aplicação. Por isso, embora estejam relacionadas,
não se confundem, apesar de serem consequências obrigatórias da questão da
linguagem do Direito[2].
A atividade de interpretação é imprescindível para a utilização da
aplicação e para o entendimento, a compreensão, a explicação e a descrição do
Direito. Sem atividade interpretativa, não é possível entender o Direito. Isso
porque o Direito é muito mais do que a vontade do legislador, ou apenas o que
está no texto da norma. O uso dos pronomes, o uso dos tempos verbais, das
preposições, dos substantivos, tudo isso muda o significado de um enunciado. Da
mesma maneira que a função social do enunciado, a pragmática demonstra que o
mesmo enunciado adquire diferentes sentidos, dependendo da função social que
ela tem e do agente que emite o enunciado. As mesmas palavras, o mesmo
significado, pela função do enunciado, faz mudar a proposta, o objetivo, aquilo
que está sendo procurado.
É
mais importante interpretar o Direito do que aplicá-lo. É possível, por
exemplo, interpretar uma norma constitucional sem nenhuma pretensão de
aplicá-la. Agora é difícil que um aplicador possa fazê-lo sem antes
interpretar. O juiz necessita desentranhar os significados das normas para
determinar qual aquela que melhor se aplica ao caso. Trata-se de uma subsunção
elaborada, pois um fato pode ser subsumível em mais de um suposto fático.
Genero R. Carrió demonstrou que a linguagem jurídica tem como base
a linguagem natural, portanto, os mesmos problemas de ambiguidade e de vagueza
que têm as palavras na linguagem natural são levados para o Direito. Mas a linguagem jurídica
possui limites: 1) o contexto
em que estão as palavras; e 2) a situação
em que são utilizadas ou emitidas.
Desde a decadência do Império Romano, Justiniano ordenou uma
recopilação de todo o Direito que existiu em Roma, vigente desde a época
clássica (República Romana). Daí o surgimento do Corpus Juris Civilis.
Ao analisar que o referido corpo teve origem na opinião dos clássicos da época
de ouro do Direito romano, observa-se que, na verdade, ocorreu um movimento
interpretativo que reuniu também as respostas que os jurisconsultos davam às
consultas que eram feitas a eles sobre o Direito positivo.
Nos séculos XII e XIII, surge o movimento dos glosadores e dos
pós-glosadores, que foi uma reação a uma fase em que o Direito estava numa
franca decadência se comparado com o Direito clássico romano. Os glosadores
estavam autorizados a fazer comentários (glosa) junto aos textos compilados.
Surgem, assim, as glosas sobre o Corpus Juris Civilis. Já os
pós-glosadores tiveram a função de fazer comentários sobre as glosas. Observe,
no entanto, que não é possível fazer comentários senão mediante uma função
interpretativa que, embora fosse uma interpretação limitada ao texto legal,
deveria ser interpretada a partir do que estava literalmente escrito.
O movimento codificador do século XIX, que teve como resultado o
racionalismo, acabou entendendo que a lei é o resultado da razão do homem. Tudo
que era produzido pela razão era perfeito. Depois que a razão chegou à lei,
nada mais havia de ser feito, ou seja, desnecessária qualquer interpretação, já
que era tudo perfeitamente produzido pela razão culminante do homem[4].
Posteriormente, o positivismo jurídico acabou assumindo também a
necessidade de limitar toda atividade interpretativa, abrindo espaço a dois
tipos de interpretação: 1) uma interpretação que procura unicamente a vontade
do legislador (interpretação subjetiva);
ou 2) uma procura da vontade da lei (interpretação
objetiva). Uma vez criada a lei esta se tornava independente do seu
criador, e o intérprete deveria somente buscar sempre no Direito positivo a
mensagem, sempre tendo como referência a vontade do legislador ou a vontade da
lei, mas nunca poderia ir além do Direito positivo[5].
Nino leciona que a interpretação como atividade possui duas etapas: 1ª) uma etapa pré-interpretativa, que se dedica a
identificar uma atividade prévia que o intérprete deve realizar no momento da
determinação do significado, ou seja, previamente à determinação do
significado, o intérprete deverá identificar se existe no sistema alguma norma
ou quantas normas sobre aquela determinada questão. Antes de entrar na questão
sintática, semântica, pragmática, lógica, primeiro tem que identificar o
enunciado, a norma de importância e de transcendência para a interpretação da
norma. Concluída essa etapa, passa-se a outra; 2ª) a etapa interpretativa
trabalha com o significado dos enunciados encontrados. Aqui cabe uma
subdivisão: um primeiro momento, em que devem ser procurados os diferentes
significados que uma oração ou um enunciado ou uma proposição tem (o caso pode
ser diferente, os fatos podem ser os mesmos, mas as pessoas podem ser
diferentes); e um segundo momento que corresponde à escolha de um significado
dentre todos os possíveis que o intérprete formulou[7] [8].
A interpretação pode ser classificada de acordo com a fonte, o
intérprete, o alcance e o método. Tendo em vista as peculiaridades deste último
em relação à aplicação do Direito, interessante tratá-lo em tópico independente
e específico.
A classificação segundo a fonte
depende da origem do significado da norma. Pode ser subdividida em interpretação objetiva e interpretação subjetiva. Nesses dois
tipos de interpretação, está uma grande polêmica da história. Relaciona-se com
aquilo que deve procurar o intérprete: se a vontade do legislador, ou seja, sua
intenção no momento de criação da norma, a vontade da autoridade que emitiu a
norma (interpretação subjetiva); ou se supõe que não se deve procurar a vontade
do legislador e, sim, a vontade da norma, ou seja, a norma que foi criada por
certo legislador, em determinado momento ela se separa deste (promulgação) e
acaba tendo vida própria, devendo o intérprete procurar a intenção que está na
norma, isto é, sua razão teleológica[9].
O critério de classificação segundo o intérprete, tradicionalmente, dividiu a interpretação em autêntica, judicial e doutrinária:
- Autêntica ou
legislativa é aquela feita pelo próprio legislador, ou seja, quem criou a norma
é a pessoa mais indicada para dizer o que ele quis dizer no momento em que a
criou;
- Judicial é a
realizada pelo Poder Judiciário, especificamente pelos juízes; e
- Doutrinária é a
feita pelos teóricos do Direito.
Essa subdivisão não está completa porque não levou em consideração
outros sujeitos que também fazem interpretações e que, no entanto, não são nem
doutrinadores, nem juízes e nem legisladores. São os sujeitos normativos,
cidadãos comuns, destinatários das normas, que necessitam ter consciência do
que está proibido e do que está permitido, porque estas normas planejam e
preveem seu comportamento. E existem também outros aplicadores, a exemplo da
Administração Pública, que são tão importantes quanto os juízes, visto que a
Administração Pública é entidade aplicadora do Direito por excelência, tal qual
o Judiciário[10].
Por fim, a classificação segundo o alcance divide a interpretação
em declarativa, extensiva e restritiva. A declarativa lida com o texto, ou seja, determina
o significado no estrito marco do que está dito na estrutura linguística, quer
dizer, é uma interpretação cujo pressuposto é aquilo que está declarado no
enunciado, na norma, na proposição. Já a extensiva vai além do que está
declarado no texto da norma, e acaba influindo mais no significado da estrutura
linguística, pois o intérprete entende que o legislador diz menos do que
deveria e, então, vai além, estendendo o significado da norma. A restritiva
ocorre quando o intérprete entende que o legislador, nessa estrutura
linguística, disse mais do que deveria e, dessa forma, ele restringe o alcance
do significado da norma. Aqui limita o significado.
Os critérios e métodos de interpretação incidem na interpretação
do Direito. Os autores geralmente interpretam o Direito por um método ou por
outro, de forma excludente. Todavia, não é bem assim, a exemplo do que ocorre
com as interpretações objetiva e subjetiva, em que o ideal é trabalhar com as
duas. Dessa maneira, o melhor método é aquele que, na verdade, faça uma junção
de todos os métodos no processo de interpretação. Isto fará com que a
interpretação seja uma interconexão.
Porém, já que é preciso utilizar vários métodos, então é preciso
também ter determinados critérios de interpretação. É preciso, preliminarmente,
determinar critérios para realizar a interpretação, pois esta não pode ser
resultado da livre e espontânea intenção do intérprete. Tais critérios guiarão
o trabalho do intérprete, e são o que alguns chamam de critérios de interpretação e outros chamam métodos de interpretação[11].
Não se trata de diferentes métodos de interpretação entre os quais
o intérprete venha porventura escolher um, segundo seu arbítrio, mas de pontos
de vista diretivos aos que cabe peso distinto. Quando o intérprete aplica
diferentes pontos de vista com pesos distintos, entende-se que é porque está
num processo de complementação. A justiça da solução é uma meta desejável da
atividade judicial: a justiça não é a utilização de um método, senão o
resultado que se espera após a interpretação.
A primeira referência a essa questão da interpretação foi colocada
por Savigny, no século XIX, que defendia o Direito como expressão do “espírito
do povo”. Savigny já tinha formulado critérios de interpretação, quais sejam: gramatical, lógico, histórico e sistemático.
O entendimento gramatical
procura seu significado através da estrutura linguística, ou seja,
quais os sentidos que tem as palavras, como elas estão conectadas, qual a
relação linguística que se dá entre elas, uma vez que, conectadas no sentido da
linguagem, contêm um determinado significado. Procura-se o significado da norma
ou do enunciado a partir da estrutura gramatical do enunciado, os sentidos da
palavra e de que forma estão conectadas.
O critério lógico
também foi desenvolvido por Savigny, no sentido de que a interpretação tem que
evitar incoerências. Com a interpretação lógica procura-se determinadas
incoerências na busca do significado. Portanto, quando se pretende evitar
contradições no processo lógico, absurdos interpretativos, é preciso utilizar
certo rigor lógico.
O método histórico
refere-se à busca do significado das normas não a partir de métodos lógicos ou
gramaticais, mas sim à procura do momento da criação da norma, o fundamento
histórico para a criação da norma, ou seja, buscar no legislador, buscar quais
eram as discussões no processo preparativo, qual era a situação, qual era o
pensamento, quais os critérios sociais, a demanda social, o que o motivou, a
maneira como foi regulada.
Outro método de Savigny é o critério sistemático, no qual ele defendeu que o Direito é um sistema e,
portanto, as normas que nele aparecem devem preservar uma determinada unidade.
Por isso, no processo de interpretação deve-se preservar a unidade para que não
ocorra quebra da sistemática do Direito. Considera-se que a norma pertence a um
sistema e, portanto, o significado que ela tem não pode ser visto de maneira
diferente, dissociada do significado que ela tem em relação ao Direito ao qual
ela pertence.
Também Karl Larenz tratou de elaborar critérios de interpretação, que, no entanto,
diferenciam-se daqueles de Savigny, o que não significa dizer que não derivam
destes. São critérios que podem ser entendidos como consequência aos critérios
de Savigny: sentido literal, contexto significativo da lei, intenção reguladora, critérios teleológico-objetivos, conformidade com a Constituição e inter-relação dos critérios de
interpretação.
O primeiro é o sentido
literal, e deste ninguém pode se afastar. Significa interpretar dentro
do significado da palavra, ou seja, do significado da norma.
O contexto significativo
da lei refere-se a identificar que essa norma que está sendo interpretada
pertence a uma lei, o significado dela nunca poderá ser achado fora do contexto
em que ela está colocada. Procura o significado da norma no contexto
significativo da lei, no marco contextual em que ela se encontra.
A intenção reguladora,
isto é, fins e idéias normativas do legislador histórico, pode ser associada ao
método histórico de Savigny, que, para decidir qual o significado que a norma
interpretada tem, busca-se as intenções do legislador. Aliás, mais do que as
intenções, o contexto histórico em que se deu a formulação ou a criação da
norma.
Nos critérios teleológico-objetivos
não se procura as intenções do legislador no momento da criação, mas sim o
significado que a norma tem hoje, qual a sua finalidade no presente.
E, ainda, a conformidade
com a Constituição, significa que toda interpretação deve partir da
busca do significado em conformidade com a Constituição.
Agora, o mais importante é evitar o isolamento desses critérios,
devendo-se buscar uma inter-relação entre esses diferentes critérios de
interpretação. O papel do intérprete é exatamente relacionar um critério
interpretativo aos demais.
Já Ferraz Júnior faz a seguinte classificação: diz que os chamados
métodos de interpretação são na verdade regras
técnicas que visam à obtenção de um resultado. Como elas procuram ser
orientações para os problemas de conflitos, esses problemas são de ordem
semântica, sintática e pragmática. Essas regras técnicas são: 1) interpretação gramatical, lógica e sistemática; 2) interpretação histórica, sociológica e
evolutiva (ou seja, quais são as necessidades sociais que hoje existem e
como deve ser lida essa norma para corresponder à realidade social); e 3) interpretação teleológica e axiológica (busca
da finalidade da norma, de sorte que há determinados critérios éticos, do que é
justo, porque a justiça não é um critério interpretativo, senão o resultado que
se busca com a interpretação). Expõe, também, que essas regras técnicas não são
métodos, mas orientações diretivas.
Outro método discutido é o de Dworkin, em que ele defende, embora
não claramente, o método construtivo,
ou seja, a interpretação do Direito como um processo de construção do Direito. O resultado não está na
lei, na norma, mas na construção do significado, partindo como pressuposto
daquilo que o juiz entende como sendo o significado da norma. Porém, essa
construção não depende apenas do juiz, pois, ao mesmo tempo, é também o que a
sociedade demanda que seja estabelecido. Veja que há uma junção dos métodos
gramatical e sociológico com o histórico e evolutivo[15].
Observe que esses diferentes posicionamentos não oferecem
critérios contraditórios. Pelo contrário, eles fazem sentido a partir da
consideração de que existem simultaneamente e que estão entrelaçados, de
maneira que ao intérprete cabe a tarefa de considerá-los concomitantemente.
Aplicação é a utilização de preceitos normativos – normas – para
solucionar casos concretos, quer sejam conflitos ou não. Esse processo
aplicativo sempre supõe uma decisão.
A importância deste tema está no fato de que o Direito se realiza
através da aplicação, e todo o trabalho do operador do Direito gira em torno,
justamente, da aplicação. Porém, se por uma parte é verdade que a aplicação do
Direito é a atividade principal, é uma falácia dizer que o Direito depende da
aplicação[16]
[17].
Preliminarmente, é preciso estabelecer duas importantes questões
para a caracterização da aplicação do Direito:
1.
Todo
processo de aplicação é um processo de realização das normas, seja a realização de normas primárias ou de normas de conduta,
ou realização de normas secundárias ou de normas de organização, ou, ainda, de
normas que conferem competência. A realização compreende em procurar na
sociedade o sentido teleológico da norma, pelo qual ela deve ser efetivamente
cumprida;
2.
Todo
processo de aplicação do Direito é sempre um processo decisório, do que se infere que todo o Direito e toda norma é um processo
decisório. As normas representam uma decisão daquele que tinha competência para
tomá-la. A decisão é o resultado da aplicação da norma, portanto, toda
aplicação supõe uma decisão.
Tradicionalmente a aplicação é estudada como silogismo entre a premissa maior (norma) e a premissa menor (fato). Porém, este
processo oferece uma visão estreita da aplicação.
Por isso, é melhor seguir a lição de Dworkin, que permite uma
visão mais ampla, que bem demonstra que a aplicação do Direito não é um
processo simples como desenhado até então. Defende Dworkin que nesse processo
de aplicação, entre a norma – como premissa maior –, e o fato – como premissa
menor –, existem diversos outros fatores – de ordem política, ideológica,
moral, circunstancial, espacial e temporal – que tornam o processo de aplicação
bastante complexo[18].
Estas razões fazem com o processo não seja tão simples. Não é
possível minimizar a importância que tem a aplicação como processo decisório,
como processo de realização do Direito, como processo subseqüente da
interpretação. Por isso é tão importante.
A complexidade do processo de aplicação está no fato de que ele
supõe uma dupla leitura da norma (premissa maior): 1) parte de uma leitura descritiva; e 2) passa a uma leitura
da parte prescritiva.
Quando um juiz decide, ele utiliza dois tipos de normas: a norma
que autoriza a decidir (normas de competência) e a norma que se ajustará ao
caso concreto. Sempre o processo de aplicação supõe por uma parte a decisão, e
por outra parte a realização. Dessa maneira, a aplicação compreende o binômio
decisão – realização[19]. A aplicação é um processo especial de realização porque
nele participa o Estado, buscando que o sentido teleológico do Direito seja
executado[20].
Gregorio Peces-Barba, Eusebio Fernández e Rafael de Asís tratam
a aplicação como aquela atividade consistente na utilização de uma norma
para a resolução de um problema jurídico. Nesse sentido sua
relação com a interpretação é clara, já que a norma, para ser utilizada, deverá
ser previamente interpretada. Assim, num sentido mais correto, é possível dizer
que a aplicação é a utilização da
interpretação dada a uma norma jurídica para a resolução de um problema
jurídico. Isso põe por terra qualquer lição no sentido de afastar
a aplicação como utilização dada a uma interpretação. Ou seja, essa ligação
entre interpretação e aplicação não está mais em pauta de discussão. Isso
porque interpretação significa busca do significado, no sentido de alcance. Uma
vez que o aplicador chega a um determinado significado, segue o momento da
decisão, ou seja, sempre a decisão supõe previamente a interpretação da norma. A decisão é resultado de uma prévia
interpretação.
A aplicação é um processo pelo qual um fato subsume-se em uma
norma. Ressalte-se, porém, que essa a atividade de aplicação é aquela na qual
intervém o Estado e, por isso, ao tratar do tema, não se pode afastar o
tratamento da questão dos órgãos e instituições com competência para aplicar o
Direito[22]. O que mais importa, doravante, é a aplicação realizada
pelas instituições e órgãos do Estado, porque é o mesmo criador ocupando-se dos
objetivos a sua criação, ou seja, a preocupação do Estado em atingir a finalidade
que ele mesmo deu à norma no momento em que a produziu[23].
Na verdade, tipicamente é um processo de produção de normas é um
processo resultante da aplicação de normas, quando o aplicador é instituição ou
órgão do Estado[24]
[25].
Quanto às instituições ou órgãos aplicam o Direito, duas
características se impõem: 1ª) a subsunção resulta da atividade de um fato a
ser subsumido em uma norma geral, em que é produzida uma norma particular; e
2ª) a norma produzida é hierarquicamente inferior à norma aplicada.
Se realizado pelo Poder Executivo, não é diferente. O Poder
Executivo também cria normas gerais através de ministros ou do presidente por
meio de um decreto presidencial, e normas particulares, especialmente através
de manifestações da Administração Pública. Só que essas normas produzidas
também são hierarquicamente inferiores à norma que foi aplicada e que deu
origem a essa norma nova ou derivada ou deduzida dessa norma geradora.
Esse processo pode ser assim esquematizado: PREMISSA MAIOR (norma geral) + PREMISSA MENOR (fato) = CONCLUSÃO (uma nova norma[26]).
Subsumido o fato à norma – a premissa menor na premissa maior, ou
seja, verificado e comprovado que este fato estava descrito na norma –, surge
uma determinada proibição (que é a prescrição que a norma tem), que também
traz, na parte prescritiva da norma, uma consequência, a sanção. A conclusão, então, de que o
indivíduo deve ser preso é, primeiramente, uma norma jurídica particular, e,
segundo, essa norma é uma conclusão originada do resultado de que essa premissa
menor foi subsumida em uma premissa maior, por exemplo, do Código Penal. Só que
esta proibição de matar o outro supõe uma condenação que está prevista na
prescrição, e a conclusão não é a sanção (porque faz parte da premissa maior);
a conclusão é a sentença. Não é possível aplicar a premissa maior se o fato não
for subsumido (se não encaixar na descrição da norma).
É preciso esclarecer que essa subsunção não pode ser tratada como
um simples silogismo, senão, sempre perante um fato, isto é, perante as mesmas
premissas maior e menor haveria sempre a mesma conclusão. Mas as conclusões nem
sempre são as mesmas. Pode ocorrer que do mesmo fato, da mesma norma, decorram
conclusões variadas, porque nessa atividade de subsunção, outros fatores
intervêm fazendo com que o silogismo seja quebrado, imperfeito. Porque existem
outras circunstâncias de diversas naturezas, como já disse Dworkin, aqui citado
anteriormente, que intervêm no processo de aplicação, como os valores morais e
políticos, os princípios e preconceitos etc.
Há, no entanto, um elemento mais objetivo que intervém nesse
processo de subsunção, que é o elemento prova[27].
Na subsunção o aplicador necessita levar em conta determinadas provas que
permitem verificar se o fato realmente aconteceu da maneira que está descrito
na premissa maior, comprovar se os envolvidos no fato são os sujeitos descritos
na premissa maior, e se, verdadeiramente, a ação dos sujeitos que intervêm
neste fato são atividades e relações proibidas ou permitidas na premissa maior.
Isto também quebra a afirmação de que subsunção e aplicação sejam mero
silogismo mecânico.
Carlos Cossio defende que este processo de aplicação não é
simplesmente uma dedução, quer dizer, não é simplesmente levar um fato a uma
norma, pois a norma também vai ao encontro do fato (não somente o fato vai à
norma procurando subsumir-se dentro da descrição que a norma tem, senão também
que a norma vai ao fato). Só que ele diz que nesse processo em que a norma vai
ao fato, acontece uma estimativa, que nada mais é que uma questão valorativa.
Assim, a norma também vai ao fato porque valora este.
Nessa mesma linha, Abelardo Torré também é da opinião de que a
aplicação do Direito é algo mais que uma mera dedução silogística. Não há dúvida de que
intervêm valorações impossíveis de serem negadas, pois, como já se tem
explicado, toda norma jurídica implica uma valoração de condutas. Um jurista,
no momento de aplicá-la a um caso concreto, valora, por sua vez, a norma e
também a conduta, isto é, o fato.
Alf Ross entende que o pensamento do juiz não somente refere-se a
usar a lei por subsunção dedutiva, senão que também se refere à lei e ao caso
por uma dialética estimativa.
O caso está submetido à lei por subsunção somente depois que a lei tenha sido
declarada apta para o caso a partir de uma valoração[30]. Dessa maneira, situa-se a aplicação do Direito como um
processo complexo que não pode ser reduzido a um simples silogismo.
Por
tais razões, é possível entender o processo de interpretação a partir de um
chamado Círculo Hermenêutico[31],
no qual há todo um processo axiológico que demonstra a complexidade da
aplicação do Direito. Se este fenômeno dependesse de um mero silogismo, então
não seria necessário um juiz humano, bastaria uma máquina capaz de subsumir
fatos a premissas normativas. É verdade que a aplicação é sim silogismo; mas
não só isso. Em todo ato decisório intervém valores, idéias. É por causa desta
razão que não se pode considerar a aplicação do Direito como um processo
silogístico, simplesmente. É um processo dialético (dialética estimativa), cuja principal característica é a
interferência de juízos de valor. Quer isso dizer que o contexto não é só
normativo; é também valorativo, social, político, finalístico etc.
3.Argumentação.
Sendo que toda aplicação supõe uma tomada de decisão, é necessário
que o aplicador justifique essa decisão. É necessário fundamentar o que é um
importante princípio do Estado de Direito – relacionado com a segurança
jurídica, a legalidade –, pelo qual toda decisão judicial tem que ser fundada
no Direito. Não podemos entender esta exigência em sentido estreito, que é
colocar o artigo da norma que corresponde, não é isso não. Essa exigência
demonstra a necessidade da justificativa da decisão. Não se trata de explicar a
decisão; a explicação fica nos marcos limitados do silogismo dedutivo (premissa
maior + premissa menor = solução ou decisão).
Seguindo a Abelardo Torré e a Genaro R. Carrió, a decisão também
compreende a utilização de argumentos dedutivos e de argumentos estimativos, ou
seja, junto com a subsunção, também a questão estimativa. E aí, indiretamente,
fala-se em justiça e eqüidade, o que vai além do simples silogismo dedutivo.
Se toda decisão judicial tem que ser fundada em Direito, devemos
interpretar isso como uma necessidade de justificar a decisão. Justificar
significa expor os diferentes elementos que foram usados para chegar à decisão.
Às vezes isso pode criar premissas e não unicamente interpretar as premissas.
Não é uma questão de interpretar o fato e interpretar a norma, senão que pode,
nesse sentido estimativo, chegar também à reformulação e até à criação de
determinadas premissas. Porque o correto não é ir da solução às premissas (como
acontece costumeiramente). Quando o aplicador utiliza esse caminho (da solução
às premissas), ele não tem que justificar. Mas quando ele faz o caminho certo,
qual seja, das premissas à solução, ele deve sim justificar o porquê dessas
premissas. Ele tem que justificar qual o tipo de valoração, de raciocínio que o
levou a essa solução. Esse processo é o processo de argumentação, ou
seja, a justificação de certa decisão. Argumentos são os instrumentos, os meios
utilizados para convencer; não são simplesmente para expor o ocorrido, é para
convencer[32].
Qual a sentença justa? É aquela que demonstra na sua justificação
que essa solução foi a melhor. Não é nem dizer que foi a solução correta e,
sim, que foi a melhor solução. Se aquele que ler a sentença não concorda com
raciocínio, dificilmente a considerará uma solução justa, pois para esta
estimativa (considerar justa) é necessário ir aos argumentos e eles devem estar
na solução. Não pode ser uma sentença que simplesmente se dedique a explicar a
decisão e, sim que se dedique a justificar (expor uma análise que foi feita em
relação às premissas). E que o raciocínio utilizado, ou seja, o processo para
chegar à solução, seja exposto de maneira que se concorde com o procedimento
utilizado para chegar à solução[33].
A argumentação não é somente uma atividade dos juízes. Os legisladores
e os doutrinadores também precisam argumentar. Manuel Atienza
determina os campos em que se verifica a necessidade de argumentação:
1.
Produção: é o momento de
criação das normas em âmbito legislativo. A argumentação apresenta-se como
necessária para justificar dois discursos decorrentes desse momento: o político
e o técnico-jurídico. Nesse sentido, a argumentação apresenta a justificativa,
as razões pelas quais aquela lei foi criada e porque tem aquele enfoque. Quando
um legislador coloca razões em favor da formulação de um artigo ou de outro,
está argumentando, querendo convencer. Se o Direito é considerado uma atividade
comunicativa, será preciso aceitar que nesse processo comunicativo o emissor
tem uma pretensão de que o destinatário chegue não somente a entender, senão
que também aceite, e como ele precisa que o sujeito normativo, o destinatário,
aceite a sua decisão, que é a intenção normativa, a intenção da norma, ele
precisa argumentar;
2.
Explicação:
é o campo da dogmática. Defendem-se teses, critérios ou pontos de vista,
apresentando razões. Um professor também pretende convencer os alunos de que o
que ele está defendendo, está certo. Outros autores
também necessitam de argumentos para convencer aos leitores de suas posições,
convencer de que o raciocínio é correto, que as razões colocadas estão corretas[35];
3.
Aplicação: é o principal
momento da argumentação. A necessidade argumentativa afasta da aplicação do
Direito o mero silogismo, o formalismo. O poder não isenta o aplicador de
justificar a decisão. Aí está a razão pela qual não se pode ver mais a
aplicação do Direito como um processo de correlação de premissas, mas de
demonstração e justificação de uma escolha; não é mais para dizer como chegou à
aquela decisão, mas sim justificar o motivo pelo qual aquela é a melhor decisão
(ou seja, porque aquela é a decisão mais justa).
Se
toda aplicação é um processo decisório, será preciso compreender que, necessariamente, essa decisão, quando se trate do
Direito, deve vir acompanhada das
razões que a motivaram. Pode-se dizer, com isso, que a motivação e a
justificação da decisão têm o mesmo significado. Toda decisão tem que ser
justificada, especialmente esse tipo de decisão jurídica em que se pretende
dirigir as condutas das pessoas, estabelecendo orientações para os
destinatários normativos e, portanto, o Direito, como sistema normativo, está
interessado em que aconteça uma aceitação das decisões, uma aceitação das
prescrições. Para tanto, é necessário convencer, pois o Direito não pode ser realizado
o tempo todo de maneira violenta, com força. É necessário que a mensagem tenha
uma determinada aceitação para que a conduta querida, esperada, seja garantida.
Conclusão
Pelo exposto, verifica-se que a aplicação, interpretação e
linguagem serão associadas num processo único, uma vez que o momento de
aplicação supõe sempre uma realização, seja de um tipo de norma, seja de outro,
e que essa aplicação sempre supõe uma decisão, a partir de uma escolha, que se
dá a partir da interpretação, um processo prévio que tem a função de atribuir
significado aos enunciados jurídicos.
De sorte, ficou demonstrado que a realização do Direito apenas é
um processo simples para aqueles que vêem a aplicação do direito como um
processo silogístico.
Sem embargo, aqueles que admitem a aplicação como um processo de
altíssima complexidade, concluem que sobre a aplicação incidem diversos outros
fatores de ordem política, ideológica, moral, circunstancial, espacial e
temporal.
Com efeito, foi concluído que todo o processo de aplicação é um
processo de realização de normas e tal processo é sempre um processo decisório.
Tal processo de aplicação é importante pois o Direito se realiza
através da aplicação, e todo o trabalho do operador do direito gira em torno,
justamente, da aplicação. Em outras palavras, a aplicação é um processo
especial de realização porque nele participa o Estado, que busca sempre a
execução do sentido teleológico do Direito.
Assim, demonstrou-se que o processo de aplicação do direito passa
pelas três etapas: interpretação, decisão e argumentação, de forma a afastar
qualquer afirmação de que a aplicação do direito cinge-se ao mero silogismo.
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Argumentação
não se confunde com a Retórica. Esta é a apresentação de razões com o objetivo
de persuadir; tenta convencer sem, no entanto, seguir regras. A argumentação é
diferente: é um debate a partir de regras pré-estabelecidas, comensuradas,
aceitas, medidas. Existe um procedimento com racionalidade (discurso racional).
A racionalidade está no procedimento, e não necessariamente no conteúdo da
tese. Na argumentação jurídica parte-se do Direito, onde se encontram regras
que tornam o procedimento racional.